você balançava no ar como um rasgo de estrela no céu

Camila Naomi
5 min readApr 4, 2023

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-Ontem, ontem, você balançava no ar como um rasgo de estrela no céu.

Ele insiste. Mesmo que os olhos dela estejam mais distantes que o céu.

-Seus quadris se deslocavam como se houvessem desprendido do corpo. Era excitante e desajeitada. Era como assistir uma mulher com mais de quarenta tentando se divertir. Tentando dar um pouco de recreação a sua alma velha. A parte que eu achei mais excitante foi assistir um corpinho tão gostoso de vinte anos se movimentar com o mesmo amargor e a mesma ausência que um corpo de quarenta.

As estrelas ainda rasgam e ela age como se ele não estivesse lá. Sua presença quando fingida de invisibilidade lhe parecia mais como um abraço. A sensibilidade suspeita de ansiar pelo ponto mais pontiagudo da solidão para que nunca de fato se sinta só. A dramaturgia de provocar solidão, mas nunca ter a coragem de encará-la nos olhos. Ela quer tanto que ele vá embora que sua testa começa a criar uma forma de martelo, seus dedos viram cinco pregos de cada lado, seu corpo endurece, vira um pedaço de lata, seu coração de metal quando bate ecoa pelo apartamento inteiro.

-Não se preocupe, querida. Você pode dançar com o mesmo infortúnio de uma mulher de quarenta anos, mas ainda fode como uma garotinha de vinte.

Ela se vira contra ele. Caminha em direção oposta. Suas costas de bronze brilham com o sol das dez da manhã que, agora, descobre um novo lar para trazer luz. O sol bate na torradeira e reflete seus olhos de lamparina, duas fogueiras exauridas consumindo todo o ar do apartamento. Ela continua a caminhar. O corredor do apartamento minúsculo parece mais uma pista de corrida. Ela não acelera o passo, mas sente como se estivesse voando. Seus passos soam melodia de despedida, mas ele nunca está perto o suficiente para ouvir. Ela vai até a cozinha e encontra taças, copos, pratos de plásticos e bitucas jogadas pela mesa. O piso está aparentemente limpo, ela o olha desconfiada, como se algo estivesse à sua espera. Essa eterna sensação de espera lhe transfere alguns arrepios finos pelo corpo, como se estivesse sempre em alerta, como tivesse que despedir-se uma hora antes do trem partir, como se estivesse com um pé sempre à frente do corpo, sem saber para onde o corpo deseja ir, o pé da frente procura definir a partida. O destino não tem outra escolha senão ceder aos seus medos de garota. De braços longos e finos, ela caminha até encontrar o banheiro. Ela se encara no espelho como se quisesse contar um segredo, mas teme muito magoar a si. A garota observa o pentear de cabelos de petróleo, olha os fios desperdiçados na escova, se pergunta qual será sua aparência com quarenta anos e se com quarenta anos ainda vai aguçar nos homens seus instintos mais passivos, se serão capazes de amá-la no pandemônio que cria para si todas as noites, seja na sua cama ou de outrem. Se ainda irá assustá-los enquanto mordiscam seu ombro nu. Sabia e gostaria de acreditar que não, que a arte só é admirada quando bela, e se espantava sempre que descobria que a obscuridade e obscenidade podiam até atormentar, mas nunca chegavam a afastar; porque no fim todos precisam sentir o sabor de eletricidade no sangue. Olhos de lamparina refletem a chama no espelho, mas logo serão apenas fumaça, ela reflete sozinha.

Toda a distância dela é um pedido de socorro — ele o sabe. Conhece quando seus passos ultrapassam o chão. Quando se sente miserável demais para debochar da piedade do coração. Quando muda tanto de tamanho que parece quase inofensiva, quase amável, quase tocável. Do outro lado do cômodo, é como se ele pudesse ouvir pensamentos. Sabe que essa é sua oportunidade. Não sabe quando será a próxima vez que ela se amesquinhará até o ponto mais ínfimo, mais atingível, mais despido de sua própria estrutura. Ela não sabe, mas ele sente pequenas agulhas em sua têmpora, que escorrem pela garganta, como se as tivesse engolido, quando apenas consegue tocá-la de verdade quando está muito deprimida para reprimi-lo e incapaz demais para transformar a interação em uma cena triste de filme. Perde-se dentro da dramaturgia, porque a vida por si só lhe parece sempre pouco. Ela não o conhece, mas dentro dele moram sonhos de uma vida inteira. Sempre sonhou em se casar, construir uma família, ensinar os meninos a beberem cerveja e as meninas a baterem nos meninos que tentam brincar com suas saias. Ela não o sabe, mas mesmo que ela não tenha olhos para ver, ele, ao observá-la neste espelho manchado, consegue enxergá-la brilhando ao cuidar de alguém além de si mesma, sorrir com o barulho de passos descalços de criança, amar mesmo que apenas a ideia seja muito mais excitante, inspirar-se com o tédio de uma vida de almoço de domingo. Ela permitiria amar e respeitar, se soubesse que é real, seus pensamentos tomam forma. Se mantém ereto e firme atrás dela, quase sem respirar, como se ela não pudesse notá-lo, como se o intuito fosse fundir-se dentro dela. Sendo parte dela, faria o que ela precisasse. Seus cabelos de petróleo parecem pingar no piso branco do banheiro. Ele se aproxima, sua respiração muda de forma, como se o ar se tornasse mais denso e delicado próximo a ela. Coloca seus cabelos para trás dos ombros. Pega delicada e silenciosamente um punhado de cabelos longos e escuros e os amarra para trás em um coque que se desfaz. Sua nuca está totalmente à mostra. Seus lábios são puxados pelo magnetismo daquele pescoço de lata que brilha como se estivesse mandando um sinal de abrigo. Não resistir é uma das coisas que a faz feliz, ele então começa a lhe distribuir pequenos beijos por volta do seu pescoço brutal e quente. De início, a maneira angelical traz a ela uma sensação de devoção, de fechar os olhos e saber que está segura. Um sentimento alaranjado nasce no começo do seu estômago. Ele não diminui o ritmo nem a intensidade dos beijos, chega perto da sua bochecha e percorre até o fim da nuca. Por detrás dela, começa a subir sua camiseta larga. Ela levanta os dois braços para ajudá-lo. A camiseta percorre até o topo da sua cabeça e vai parar no chão junto à mancha de petróleo. Ela se observa nua. Os dois veem a mesma coisa, mas enxergam coisas diferentes.

-É bom não estar sozinha.

Ela diz, com voz rouca e tom desprotegido.

-Enquanto eu estiver aqui, farei o que puder para que não se sinta.

-Mas quase sempre me sinto.

-Eu sei.

-Você também se sente sozinho quando estou aqui?

-Sim.

-Faço com que se sinta mais sozinho quando estou aqui?

-Ah, querida.

-Pode dizer.

-Às vezes. Quando é doce, não. Poderia devorá-la quando doce. Amá-la como nenhum outro homem um dia foi capaz. Entendê-la na brutalidade, entediá-la para que um dia entenda que não é a pulsão que faz o coração bater.

-Eu sou sempre um pouco demais.

-Sim.

-Preciso desaparecer um pouquinho. Pode me abraçar firme, agora?

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