catarina e o coração violento

Camila Naomi
4 min readSep 20, 2022

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escrever coisas bonitas. escrever coisas bonitas e feias. escrever um montão de coisas formando piruetas na cabeça. o papel está muito longe. escrevo pelas paredes. grito o rasgo que vem de dentro. quem não tem cão, caça com o que tem. queria muito era o silêncio. mas quando faz silêncio fora, não faz silêncio dentro. vontade de beijar a vida na boca, e depois ir dando selinhos em todas suas partezinhas, até as mais nojentas. sentir o gosto amargo para quando vier o doce ser o extremo.

melhor arrebentar no ápice do que viver no aconchego. é melhor sofrer do que ser inabitado, frígido, sedento. oco por fora, morno por dentro. sim, a casca já é oca, imagina o que vem dentro. pior que ovo podre, eu suponho. é melhor padecer de desdém do que não ter nem líquido para lubrificar nem a vida, nem o tesão, nem os olhos, nem os dedos. árida, que coisa mais bastarda. é melhor sofrer. saber que é capaz de gritar na garganta um grito úmido. o oposto é aquele que trava antes mesmo de sair e dá amigdalite. tremendo nó. o grito úmido lubrifica a dor, faz descer mais fácil, o atrito ameniza, vem logo o que precisa. ora, se existe dor é para sentir, se não não existia em formato de sentimento.

pavor de gente frígida que quer castrar o resto da gente. tanta gente que não pensa o que fala e não sente o que sente. tanta gente que busca arrancar os olhos de todas as gentes porque enxergar através dos seus não é o suficiente. que desperdício. e ainda tem gente que deixa de viver o amor em cada gente crendo que vai encontrar o amor de uma só vez. só não chega a ser insanidade porque não há potência — até a insanidade tem mais beleza. onde eu estava mesmo? ah, o líquido, todo molhado de vida, molhando a garganta como saliva de beijo. o sangue também é líquido, não é? não sai pela garganta porque jorra no peito. gosto tanto de sentir o sangue batendo no peito. você gostava também, socando a caixa torácica. não me lembro, já faz tanto. não lembro porque não lembrar é fingir que nunca aconteceu. inexistir um passado para virar cinza de pó de morto. uma lembrança que ninguém mais consegue lembrar. insignificante. mas ainda sinto sua presença no canto dos espelhos, me assombrando com tanto carinho. gosto dos sustos que levo quando viro o rosto à direita e vejo um vulto e brinco de ser você. você só não virou cinza porque sua mãe não deixou, mesmo quando eu disse que era o seu desejo. mãe que é boa não escuta nada além do próprio coração.

mas o que eu queria dizer não era isso. ora, ora, ora muito longe disso. ainda tô aqui, não tô? então, permita-se divagar porque é a única coisa que sei fazer bem. então, então, então, os dias foram feitos para viver o extremo. a melancolia vem me buscar pelos dedos dos pés; mas eu digo que não, sá pá lá sua imprestável. manipuladora, carente, cega, feia, sedenta igual os frígidos que andam por aí como se fossem gente como a gente. quantas vezes eu pensei que para tirar a sobra do amargo e colocar no papel era preciso da mão dela no meu peito. alisando o terreno, repuxando a pele, entediando minha alma. pesa, pesa, aí como pesa. pesa demais, mas olhe-me agora, olhe-me, estou escrevendo sem ela. se um dia eu ganhar qualquer prêmio barato e caro, não dedicarei a ela. mesmo com pesar, todo e qualquer prêmio barato e caro é meu. sei ser brilhante sem você, sem ela, sem nós. posso brincar de ser artista sem tristeza. posso. não posso? quem disser que não, que nade na própria tristeza.

dos dias eu quero apenas o cheiro. coisa pegando fogo, panela no fogo, quem foi que esqueceu? coisa queimando, a vida não acabando, a vida queimando. os dias não passando, os dias pegando ritmo na brasa, enquanto a gente for celebrando. deixa arder, eu lhe avisei para deixar arder. arde tanto que cura. centelha o suficiente para dançar bastante a vida. bastante eletricidade para deixar a cabeça voando e o coração violento. ele batendo de dentro e eu de cá, ele batendo e eu devolvendo, os dois ficando mais fortes; e violentos.

viver porque é bom e ruim, e até quando é bom é ruim e quando é ruim também é bom. viver porque se não morrer? isso um dia eu vou chegando, de passinho em passinho. no dia que você morreu, o sol chegou, os pássaros não calaram a boca, o semáforo abriu, a moça que varre a casa varreu a poeira da calçada direto pra rua, o homem beijou, a mulher vacilou, o porteiro abriu, eu entrei, ele entrou em seguida, todos nós entramos e saímos, quem ficou foi você. a vida fez questão de não dar a mínima. nem a última gota da garrafa fez questão de emperrar na boca antes de cair para dentro da minha garganta. úmida, seca; tudo continuou. porque tudo que é vida borbulha. sua falta de vida me ensinou o que você passou a vida inteira tentando. na melancolia só há pausa, e na pausa não há vida além da superstição, do e se e se e se; e se não? e se sim? e se nunca? e se você soubesse que fervilhar só com a vida que é minha é o maior tédio que deus inventou.

Este é um trecho de um livro que estou escrevendo. Nada aconteceu comigo, não perdi um grande amor, não estou na ponta da arrebentação. Mas Catharina está, e de certa forma eu estou com ela. Porque a dor que ela sente, eu que invento. A loucura que ela inventa, eu que sinto. De alguma maneira lúdica demais para fazer entender, nós nos completamos nessa valsa de cria e criadora. Estou escrevendo este livro para sentir liberdade; para ter liberdade. Compartilhar partes dessa história no Medium é uma forma de não desistir um momento antes da hora. Agradeço a quem lê, a quem um dia lerá e, acima de tudo, à Catharina e ao seu amor incondicional que só as palavras são capazes de tatear.

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