a asa voante da borboleta pisada

Camila Naomi
3 min readJul 31, 2022

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Eu andava pela rua na volta do mercado. Encantador como a luz do dia brilha nas atividades mais enfadonhas — o universo em comunhão com a natureza, brilho e enlevo, mentira e luxúria, um belo dia para um ângulo insólito.

Tropeço e sinto nas pontas dos dedos a fatalidade da vida. Como se os pés fossem a cola que nos gruda ao mundo e pode muito bem um dia perder a propriedade e se desfazer em um nada, despencar-nos de nós mesmos. Sinto a ponta da vida nos pés e vejo a morte quase duplicada por um descuido meu de olhar o céu e esquecer o chão.

Vejo-a caída e indefesa; ela me vê também, procura-me com suas antenas amassadas. Ela brilha, brilha, como um soco do sol. Fico perplexa, remediada, perdida e abandonada. Como pode ser tudo que brilha um êxtase interminável de um profundo e belo nada. O asfalto duro me mostra a realidade, ele me ordena ignorância; diz que pelas calçadas e buracos existem vários brilhos mortos por aí. Mas eu sei que não. Existem muitas coisas mortas, a maioria sem brilho ainda em vida.

As minhas amigas vão pensar que enlouqueci. Vão cochichar quando eu olhar para o contrário, vão dizer que sou solitária e frígida. Vão abraçar meus medos e dizer que é contestação. Uma ajuda bem-vinda para um ser virtual — não há pele e osso, apenas pensamentos. Uma existência passível, o mundo virtual, o mundo que não existe, o mundo que não serve pra nada. Eu sei que pensam isso. Dão graças a Deus que foram abençoadas com os pés, não com as mãos. Quem tem mãos só tem palavras; nada.

Elas vão zombar de mim ao perceber que estou apaixonada pela borboleta pisada no chão. Mas elas nem estão aqui. Eu e a borboleta quebrada no chão. Eu de pé, ela no chão, punidas pelo mesmo universo. Eu viva, ela morta, mas um pouco das duas em cada uma.

Criaturinha infinita na eternidade que a serviu. Desejo abraçá-la, sentir suas asinhas de papel. Tons de laranja mesclados com cinza, o laranja o deleito, o cinza a corda. Imagina morrer pisada por um pé brutal e ainda servir de inspiração para uma maluca inconsistente. Sozinha, sem amigos, sem amor, só ela, ela e palavras, ela e teorias, ela, ela ela, e um montão de outras coisas estéreis.

Escreva logo antes que se esqueça da loucura das frases que rodeiam sua cabeça. Peneire o mínimo de arte que se pendura nos buracos pequenininhos e se junte às demais bactérias e fungos e restos de restos com um punhado de vida na sua caixa de insignificâncias. Ninguém vai entender mesmo, ninguém vai se dar o trabalho mesmo. Posso fingir que enlouqueci, assumir o que eles falam pra o que falarem ser apenas a verdade e ninguém liga pra verdade.

Borboleta pequenina, veraz, grande borboleta feroz, gentil e desdenha. Vida indefesa para um poema forte no leito da morte. É isto! Tem coisa que não foi feita pra fazer em vida; a vida só serve para os soldadinhos de plásticos enfileirados num vidro frio. A asinha ainda em vida. Balançando com o vento, pedindo pra voar. A asa esquerda dividindo espaço com o asfalto, a asa direita pedindo pra voar e a borboleta morta suplicando nada além da paz.

O sentir, sem dizer, sem expressar, sem explicar, sem a língua batendo nos dentes e jorrando palavras em cascata, afogam qualquer nubívago com os pés arrastados por cola. Eu não pedi. Mas ainda sou; faço o que então? Borboleta quebrada, tens a resposta? Amo, portanto? Procuro um amor irreversível, uma festa violenta, o abrigo no colo da mãe e o consolo no abraço do pai? No final, é isto, não é? Palavras não farão vida por você, garota obtusa, parva, tonta. Então, viva, vá, sem especulações, sem teses, sem princípios, só a carne crua e sangrenta da vida. Do líquido tímido que escapa da borboleta pisada.

Vergonha do que? Da sua loucura? Devia ter vergonha da urgência de sociedade, de comunhão, de dividir a compreensão. A cola gruda nos pés, já está aqui, afinal, não está? Estou. Estou? Danço nas nuvens porque é onde há matéria, onde a asa da borboleta morta alcança. Toda beleza acaba pisada no asfalto. Beleza é pra cair. Amassada ou não, uma asa ainda voa, ainda no chão.

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