a alma pequena das mulheres — uma peça curta

Camila Naomi
9 min readMar 17, 2024

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Uma mulher sozinha em uma casa, um disco velho roda raspando sob a agulha fina. O som da música está tão baixo que o somzinho, muito minúsculo da agulha raspando no disco ou do disco raspando na agulha, faz mais som do que a própria música.

Ela se encara em um espelho herdado da avó. Foi presente de casamento e a única coisa que restou; ambas. Ela é ela mesma, a mulher sozinha e dentro dela há duas — não é sua companhia.

Ela (E.) — a mulher

Ela por debaixo dela (E.P.D.D) — a mulher por debaixo dela

E.: você consegue escutar isso? não, não, não agora. espere um pouco. (pausa) mais

um pouco. no próximo breve instante, será rápido, portanto, é preciso ser ávida e paciente. ávida e paciente. espere. (pausa) toda espera é um sinal de condescendência. tenho certeza que algum dos deuses — pois existem tantos

- toma conta disso. quase, quase, quase agora! (diz em um tom fúnebre, exasperado, um excitante contido). agora é quase

agora.

E.P.D.D.: e quando será agora?

E.: saberá quando ouvir.

E.P.D.D.: você já ouviu?

E.: eu lembro que sim, mas tive medo.

E.P.D.D.: medo de quê?

E.: medo desse silêncio.

E.P.D.D.: ouviu, ouviu? acabou de passar, nossa, foi rápido e foi breve, bem que tinha razão!

E.: eu disse, eu disse! saiu voando, né? como borboleta de asa fresca, peito aberto. mas eu tenho medo, não quis ouvir.

E.P.D.D.: você tem muitos medos.

E.: você não tem medo de nada?

E.P.D.D.: eu tenho medo de você.

E.: e por quê?

E.P.D.D.: pois é cínica e valente, é covarde e tem o peito grosso, tem pele de escama, mas ainda guarda este porta-retrato ridículo de papai e mamãe nesta casa tão vazia e tão empoeirada. sabe, né? eu e você somos apenas duas poeiras conversantes, observando uma

à outra

voar para dentro e para fora

e pousar, quase sempre,

no porta-retrato de papai e mamãe.

(pausa)

(E. olha para o lado, com um olhar vago e inteiro, criando um buraco no horizonte)

E.P.D.D.: comece, vai, vai comece! não tenha medo, sua garotinha medrosa, parece aquela mesma menininha que se mijou toda quando viu papai com ela, a grande, a formosura imensa, aura, aurora boreal, círculos quantos círculos, papai e…

(E. começa a andar em círculos de maneira calma e pausada)

E.: silêncio, silêncio, silêncio, vontade de…

E.P.D.D.: isso, isso, brava, rosne, rosne, continue, continue.

E.: …vontade de fazer uma pinçazinha assim, ó, com o indicador e o dedão e pegar o silêncio, assim, com os dedos, igual se pega joaninha. colocar o silêncio numa redoma de vidro. observar o silêncio crescendo, dar comida ao silêncio, e esquecê-lo, trancado e morto dentro da redoma de vidro…

E.P.D.D.: vai, vai, não pare não!

E.: …o silêncio inteiro de um quarto que ecoava dentro de um uníssono gesto de não fazer nada, de condescendência. era este o barulho da infância, o barulho perpétuo que deixou todo mundo em

casa surdo, surdo, surdo.

E.P.D.D: o silêncio é reto, ereto, caminha fino e longo por uma extensão, o silêncio é afiado, não dá volta.

(pausa)

E.P.D.D.: ei, você prefere retas ou gosta mais de círculos? eu prefiro retas firmes e eretas, eternas.

(E. continua em silêncio, perdida nos círculos)

E.P.D.D.: ei, ei, não, não volte a andar em círculos! rodopiando, rodopiando, rodopiando, na gravidade que não existe, não existe, fuja, fuja, sua tola, preguiçosa, tem preguiça do mundo e fica aí girando, girando e girando.

(E.P.D.D. dá corda em E., ou seja, em si mesma, e as duas, juntas pela mesma pele, giram na mesmo centro, até por ficarem tontas e cambalearem)

E.: eu gosto de… círculos, rodam dentro da minha cabeça o tempo todo, sabe? tipo disco riscado, repetindo aquela mesma frasesinha da música. parece até que o disco sabe.

sabe da pelinha do dedo que escapa para fora e quer puxar, puxar, mas se puxar, sangue demais irá jorrar…

E.P.D.D.: fôlego e coragem, fôlego e valentia, como as meninas grandes fazem, vai, vai…

E.: …mas dói, dói porque nunca acaba. o pensamento como montanha russa infinita do sofrimento de mim mesma, ai, ai, dói porque é imperfeito e trágico. o círculo acaba. o círculo é o formato da barriga da mãe, da feminilidade, da mulher que tem graça, respira e inspira, vida e morte, ai, ai, puxa mais forte, puxa e solta, no mesmo ritmo, puxa e solta, contrai e solta, o bebê vai e volta.

o círculo está perfeito,

finalmente.

(E.P.D.D. faz uma voz aguda e fanha, dura e ingênua, reproduz alguém que tem voz de morto)

E.P.D.D.: “cadê seu pai?”

(E. usa uma voz infantil, assustada)

E.: eu não sei, mamãe…

(E.P.D.D. começa a chorar um choro grave, de ódio e condescendência)

E.: …não, mamãe, por favor, lágrimas de mulher não, você sabe o que o padre disse ontem, né? lágrimas de mulher, chuva de Jesus, é para abençoar, mas não há bênçãos, não agora, engula o seco, áspero de

bola de pêlo de gato velho, dói mas é bom, você que disse…

E.P.D.D.: (diz com naturalidade) continue.

E.: …papai foi amar, mas volta logo!

E.P.D.D.: (diz com sua voz normal) e o que você sabe de amor?

E.: sei o que papai me ensinou.

E.P.D.D.: com mamãe?

E.: (diz repreendida) não…

E.P.D.D.: com quem?

E.: …sabe quando duas tempestades solares se encontram, assim, (bate o dorso das mãos uma na outra), um gás chamado plasma, que vem do Sol, esse plasma, ela encontra mais uma coisa, e nessa coisa, a atmosfera, eu acho, forma a aurora…

E.P.D.D.: Aurora quem?

E.: …Aurora em formato de círculos sob minha cabeça. Aurora, cheia de alvor, cheia de ardor, aurora boreal, dos seios fartos e peito largo, Aurora que cabia tanto amor…

E.P.D.D.: vá, abra asas, vai, vai, borboletinha!

E.: …você lembra da última noite que mamãe viveu como vivo mesmo,

como gente que tem sangue.

aquela noite, antes de deixar escapar o amor do peito seco.

você sabia o que mais me encantava em mamãe?

quando um animal agoniza de dor, ele grita um gemido agudo, um adeus final, de misericórdia, uma despedida grata no último espaço da garganta.

ele grita e morre, mas mamãe não.

não era um animal comum.

naquela noite que papai disse que ia jogar baralho com uns colegas no bar, mas

errou o caminho e deu de cara, virando a próxima esquina, com algo…

(E.P.D.D. fala em um tom grave, robusto, de homem que cabe num todo)

E.P.D.D.: íntimo e humano

o mais íntimo

e humano.

(E. continua como se nada tivesse sido dito)

E.: …mamãe, por alguma razão que envolve o olfato das mulheres, sabia que era sua última noite como mulher, porque depois disso ficaram duas mulheres e um morto…

E.P.D.D.: continue pelo amor de deus, continue!

E.: …ela colocou a música da sua primeira noite…

E.P.D.D.: ela dizia que papai tinha um bigode espesso e grosso, um adereço na cara.

E.: …sua primeira e última dança tocando a mesma música…

(pausa)

E.: ela nos segurou pelos braços e rodopiou e girou tanto, tanto, como peão solto pela sala de jantar, rodando, rodando, nunca vi alegria daquele tamanho.

(pausa)

foi seu grito de misericórdia, de fim.

(Smooth Operator da Sade começa a tocar e as duas dançam juntas, soltas, giram, giram, giram)

Diamond life, lover boy
He moves in space with minimum waste and maximum joy
City lights and business nights
When you require streetcar desire for higher heights

No place for beginners or sensitive hearts
The sentiment is left to chance
No place to be ending but somewhere to star

No place for beginners or sensitive hearts
The sentiment is left to chance
No place to be ending but somewhere to star

No place for beginners or sensitive hearts
The sentiment is left to chance
No place to be ending but somewhere to star

E.P.D.D.: mamãe nunca cantava, não sabia inglês, mas nessa parte abria a porta da garganta e deixava escapar aos trancos e barrancos seu inglês original No place for beginners or sensitive hearts The sentiment is left to chance No place to be ending but somewhere to star

E.: parecia que o disco havia sido riscado para ela…

E.P.D.D.: continua!

E.: …neste dia, aprendi a gostar de círculos, mesmo quando acabam, não têm fim.

o círculo é somente o fim para o tolo,

e mais um começo àquele que roda, roda, roda.

o disco não parava de tocar, nunca.

(pausa)

(E. caminha até a janela e observa o prédio da frente. há um andar com a janela aberta, luz acesa, homem e mulher cruzados um no outro, dançando juntos, balançando. E.P.D.D. observa que a mulher está redonda, guarda no ventre a esfera do mundo, gira, gira dentro dela)

E.P.D.D.: olha: redonda!

E.: roda, roda, roda…

E.P.D.D.: guarda para ela o mundo inteiro.

E.: mamãe redonda ficava linda.

E.P.D.D.: redondos e lindos eram os fartos seios de Aurora, ah os seios de Aurora, ah, Aurora, queria poder ser ela e papai ao mesmo tempo, estar no meio imenso daqueles seios,

e sentir papai,

saber onde ele foi, meu deus,

nem Deus tem o poder de sonhar tanto,

sonhos tão bonitos como este,

nem Deuzinho.

E.: continue!

E.P.D.D.: será que papai nos abandonou porque o que era redondo em mamãe já não era mais tão sexy? os círculos dela formaram a gente e seus seios fartos de tanto dar leite, agora, murchos, como uvas que eram redondas e exuberantes, e agora são secas, secas…

E.: não ouse parar, não agora, quase agora!

E.P.D.D.: …o desejo de papai era por uma fertilidade de consumir o deleite que escoava entre as pernas, não o leite que escorre do seios…

E.: depressão pós-bebês-redondos.

E.P.D.D.: …mas Aurora ainda era quente (pausa) e tinha seios redondos e vibrantes.

E.: sabe em qual época estamos?

E.P.D.D.: qual?

E.: época da maturação dos pêssegos e nectarinas…

E.P.D.D.: …começo de junho, até meados de julho…

E.: …papai, sabe o que papai era? era uma abelhinha muito saidinha, pegava suas asas finas, inofensivas, e saia voando por aí, com a segurança de um ferrão latejante, latejando.

E.P.D.D.: ele partiu na época que os pêssegos estão fortes e vibrantes e redondos, bem redondos, há quanto tempo? 20 anos?

E.: não sei, não sei contar silêncios.

E.P.D.D.: Aurora devia estar crescendo como pêssego, era garota ainda, pelo o que mamãe balbuciava no telefone com vovó, não sei porque ela pedia conselhos à vovó…

E.: do amor, só restou o espelho retangular e velho.

(E.P.D.D.: continua a jorrar palavras em devaneio, sem vírgulas, sem medos, absorta em suas lembranças de menina)

E.P.D.D.: …Aurora cheia de suco como pessêgo o fruto jovem da pele de seda pego-me desejando tão sem jeito saber qual era o sabor do suco de Aurora que envenenara papai levou-o passional ao íntimo e humano ao

mais íntimo e humano entre os

dentes suco de pêssego será que era isso

que cheirava no hálito dele suco de pêssego

manchado na língua

comecei a sentir o cheiro lá para maio quando nos dava

um beijinho tarde da noite pensava que dormíamos

lá pra maio

é deve ser deve ser…

nunca mais senti outro cheiro em seu hálito.

E.: eu guardo a carta até hoje.

E.P.D.D.: aquela que nunca enviou?

E.: sim.

(pausa)

E.: será que ainda vale a pena?

E.P.D.D.: acho que não.

E.: é…

E.P.D.D.: …guarde para quando tivermos filhos…

E.: ..ou filhas…

E.P.D.D.: ou filhas.

o meu mais íntimo e humano, para que papai saiba

papai, lembra quando eu tinha nove anos e você me colocou na aula de ballet para rodopiar igual aquelas que ficam presas na caixinha, mas, quando são abertas, encantam todas com seus giros.

você acha que elas são felizes, papai? mesmo tão altas e tão finas, e mesmo com aqueles pés de agulha, e com aquele dom de espalhar poeira de estrela a cada movimento e cada giro, você acha que são bonitas? porque penso que ficar presa dentro de uma caixinha de madeira deva ser bem triste.

eu não sei que idade eu tenho agora, pois me perdi, papai, escrevo como criança, mas não me sinto como uma.

esses dias eu ouvi mamãe chorar baixinho e escrevi umas palavras para ela, mas não quis mostrar-lhe. tive medo que a magoasse mais, pois percebi que falava mais de mim do que dela.

decidi escrever para você então,

você não existe,

mas ainda sabe ouvir, de algum lugar.

esse é o meu jeitinho de dizer adeus:

“habito-me em meus passos a melodia do adeus. alguma sinfonia que diz, sem emitir som, uma ordem de despedida. algo nos meus dizeres e trejeitos forma um caça-palavras infiel — une todas as partículas de letras para dizer um corpo inteiro de adeus.

tudo o que ecoa e vibra dentro de mim repele e atrai na mesma condição e da mesma cor de um sangue tão denso e pegajoso, em sua própria fórmula, bate-se tanto contra si, como batedeira maluca, que sua condição de existir é sempre tão remexido, ‘tão tentei passar o dedo no glacê, mas o tamanho do dedo não deixou, muito grande e grotesco, não permitiu que uma solidão tão pequena pudesse engrandecer alguém’.

enterrar não é dizer adeus. às vezes se esquece antes mesmo de se despedir. isto é a loucura! tudo está à beira do esquecimento. pais, beijos, cartas, a lista de compras, a borra de café, a marca de batom na taça, a taça, o perfume no lençol, o perfume, as palavras não ouvidas, a mão do outro, o ódio, o rancor, o espelho velho da avó. o amor vivido e o interrompido. o amor não vivido pelo medo de que a vida fosse pequena demais para suportar algo maior do que si mesmo. e antes que se esqueça disso, lembre e depois esqueça de novo, que amar é uma vida tão forte que nem a morte é capaz de matar.

espero que o seu amor esteja entre nós, apesar de”.

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